Ó morto...
Em algum lugar está presente Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildiverni e dos Altri de Corbentraz e Sura, cavaleiro de Selimpia Citeriore e Fez, paladino de França sob o comando do imperador Carlos Magno e protagonista do romance chamado Cavaleiro Inexistente. Agilulfo presenta uma peculiaridade inusitada: não existe. Dentro de sua armadura imaculadamente alva não há nada, apenas a voz metálica que serve com fé e vontade à causa da cristandade.
Ao longo do livro nos conheceremos outros personagens bastante interessantes como Gurdulu, o fiel escudeiro de Agilulfo que realmente pensa nao existir ou pensa ser todas as coisas do mundo. Por ultimo mas nao menos importante está Rambaldo de Rossiglione, aspirante a cavaleiros que se alistou em busca de vingança de seu pai morto como um herói sob as muralhas de Servilha.
Esses três personagens participam da cena mais incrivel que eu ja li, estao eles enterrando alguns corpos após uma grande batalha, seguindo as ordens do sire Carlos Magno. Cada um está a enterrar um cadaver e seus pensamentos mostram a profundidade de seus pensamentos:
"Agilulfo arrasta um morto e pensa: 'Ó morto, você tem aquilo que jamais tive nem terei: esta carcaça. Ou seja, você não tem: você é esta carcaça, isto é, aquilo que às vezes , nos momentos de melancolia, me surpreendo a invejar nos homens existentes. Grande coisa! Posso bem considerar-me privilegiado, eu que posso passar sem ela e fazer de tudo. Tudo _ se entende _ aquilo que me parece mais importante; e muitas coisas consigo fazer melhor do que aqueles que existem, sem os seus habituais defeitos de grosseria, aproximação, incoerência, fedor. É verdade que quem existe põe sempre alguma coisa de seu no que faz, um sinal particular que não consiguirei jamais imprimir. Mas, se o segredo deles está aqui, neste saco de tripas, muito obrigado, não me faz falta. Este vale de corpos nus que se desagregam não me provoca mais arrepios que o açougue do gênero humano vivo'.
Gurgulu arrasta um morto e pensa:'Você dá certos peidos mais fedidos que os meus, cadáver. Não sei por que todos se compadecem de você. O que lhe falta? Antes, se movia, agora seu movimentos passa para os vermes que você nutre. Fazia crescer unhas e cabelos: agora vai produzir líquidos que farão crescer mais altas sob o sol as ervas dos campos. Vai se tornar capim, depois leite das vacas que comerão capim, sangue de criança que bebeu o leite, e assim por diante. Ó cadáver, você é mais capaz do que eu para viver!?'
Rambaldo arrasta um morto e pensa: ' Ó morto, corro corro para chegar até aqui como você, a me fazer puxar pelos calcanhares. O que é esta fúria que me empurra, esta mania de batalhas e amores, vista do ponto onde observamos seus olhos arregalados, sua cabeça virada que bate nas pedras? Penso, ó morto, você me obriga a pensar; mas o que muda? Nada. Não existem outros dias senão estes nossos dias antes do túmulo, para nós, vivos, e também para vocês, mortos. Que me seja concedido não desperdiçá-los, não perder nada daquilo que sou e daquilo que poderia ser. Praticar ações insignes para o exército franco. Abraçar, abraçado, a orgulhosa Bradamante. Espero que você não tenha gasto seus dias de modo pior, ó morto. De qualquer maneira, pra você os dados já decidiram seus números. Para mim ainda se agitam no copo dos azares.E eu amo, ó morto, minha ansiedade, não sua paz'. "
passagem fantástica do livro O Cavaleiro Inexistente de Italo Calvino
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